Primeiro corte

David Coimbra – Zero Hora – 14.4.2008 *

Semana passada o Bernardo se machucou pela primeira vez. Sangrou pela primeira vez.

Estava sentadinho inocentemente no chão do quarto, chupando bico. Nada naquele quadro perfeito de harmonia infantil avisaria que um acidente poderia acontecer. Mas aconteceu. E a culpa, de certa forma, foi minha. Resolvi aproveitar para estimulá-lo a engatinhar. Peguei uma bonequinha checa que ele adora e a coloquei a metro e meio de distância.

Sabe o que é uma bonequinha checa, não sabe? Uma boneca de madeira oca, que tem outra boneca oca dentro, que tem outra boneca oca dentro, que tem outra boneca oca dentro, até que resta apenas uma bonequinha, bem pequeninha, não-oca.

Comprei essa bonequinha, bem… na República Checa e dei-a para a Marcinha. Por algum motivo, o Bernardo gosta muito da boneca. É só vê-la para enfiá-la na boca. Fica mascando a madeira. Então, coloquei-a ali adiante e o Bernardo começou a fazer uh, uh, uh, e a balançar os bracinhos de excitação. Debruçou-se para engatinhar, só que perdeu o equilíbrio e, BENG!, caiu de cara no chão. Não faria o menor estrago, se ele não estivesse com o bico na boca, até porque o chão é coberto por um tapete de três dedos de espessura. O bico, porém, o feriu. Abriu-lhe um cortezinho mínimo no lábio, o suficiente para que sangrasse. E para que chorasse um choro inédito, sentido, doído, cascateante de lágrimas.

Sei que foi a primeira das muitas vezes que ele vai se machucar, sei que irá cair, se lanhar, se arranhar, se lascar, mas, puxa, será que eu poderia, de alguma forma, evitar tudo isso? Porque bastou aquele cortezinho mínimo, aquela gota de sangue, para me sentir como se estivesse sendo dilacerado pelas tenazes do Santo Ofício. E quando ele brigar com o amigo de colégio pela primeira vez? E quando levar um fora da namorada? E quando sofrer sua primeira grande decepção? Oh, eu já senti tudo isso um dia e agora vou sentir de novo. Pior: em dobro! Ou muitas vezes mais, como senti com aquele corte insignificante. Será que não existe uma maneira de evitarmos isso, para mim e para o Bernardo? Será que a dor de um pai não redime a de um filho?

*Texto publicado hoje no caderno Meu Filho de Zero Hora

Sobre Elton Mello

Engenheiro mecânico com experiência em saneamento básico, especialmente em micromedição e perdas de água, e especialista em engenharia
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